Parte 21
(continuação...)
Dirijo-me ao maço de folhas de ponto e tiro uma meia dúzia, como faço sempre. Sento-me num lugar livre no auditório. Uma cópia do enunciado do teste está voltada para baixo. Abro a mochila e tiro para fora o estojo. O Engenheiro, formal como sempre, explica que o teste não tem questões teóricas. Apenas um caso prático em que devemos explicar pelas nossas palavras os processos e os métodos a utilizar neles, baseando-nos na matéria dada. Podemos recorrer também, caso tenhamos esse conhecimento, a métodos alternativos ainda não estudados, desde que fizessem parte do curriculum da cadeira e devidamente explicados. Fico contente. Um dos meus métodos preferidos ainda não tinha sido dado mas lia imenso sobre ele, online e nos livros de estudo, pelo que senti que estava bem encaminhado. O Engenheiro autoriza que viremos o enunciado, eu começo a ler... e o meu telefone começa a tocar. O ringtone dos meus pais. O Engenheiro volta-se para mim e fulmina-me com o olhar. Vermelho que nem um tomate, peço desculpa, rejeito a chamada e tiro o som. 5 segundos depois, o telefone começa a vibrar novamente. A minha mãe outra vez. Peço autorização ao Engenheiro para atender e ele, com cara de poucos amigos, diz-me para ir para a porta da sala, ser rápido e silencioso.
A chamada vai para o voicemail entretanto e uma terceira vez o telefone começa a tocar. A minha mãe novamente. Preocupado, corro para a porta e atendo a chamada. Ouço a minha mãe a chorar. No primeiro dia no novo trabalho, o meu pai caiu no alçapão do elevador e vai a caminho do Hospital Universitário de Coimbra. Ela não sabe exactamente o que ele tem, mas é grave. Desligo o telefone e corro para dentro da sala. Informo o Engenheiro que imediatamente me dispensa. Pego na mochila e saio da Universidade a correr em direcção ao HUC.
Chegado lá, informam-me que a ambulância ainda vem a caminho. Sento-me na sala de espera e mando uma sms à Luísa e outra ao João a explicar o que se passa. A Luísa responde meio minuto depois: "Tudo o que precisares eu estou aqui, querido. Muita força. Quando souberes mais detalhes avisa" mais um emoji com um beijinho. O João não responde, está a meio do teste. Mas a mensagem é entregue.
Meia hora depois, a ambulância que traz o meu pai chega. Imediatamente levam-no para dentro. Interpelo o médico do INEM que o acompanha mas ele pede-me para aguardar, entra na UCI com ele e só volta uns quinze minutos depois. Identifico-me como o filho e ele leva-me para um gabinete vazio, onde se senta e me convida a sentar do outro lado da secretária. É um médico na casa dos 50 anos, alto e em boa forma física. As mãos de dedos compridos e esguios teclam rapidamente no computador. Momentos depois, volta-se para mim, com ar sério. Eu aguardo em silêncio e a primeira coisa que ele pede é que me identifique. Digo o meu nome completo, informo-o novamente do parentesco e acrescento que sou aluno na Universidade. Ele pergunta-me o curso e eu respondo Engenharia Civil. Pergunta-me a minha data de nascimento e o meu número de Segurança Social para validar no sistema os meus dados e finalmente começa a dar-me informações sobre o meu pai. O prognóstico não é animador. Com a queda, o meu pai bateu com a cabeça e tem um traumatismo craniano grave, com perda de conhecimento e um edema que está a fazer pressão sobre o cérebro. Das séries de médicos na televisão, imagino o que lhe vão fazer. Operar, libertar a pressão no cérebro e aguardar que desinche. Tem também uma perna e um braço partidos e uma anca deslocada, mas o que preocupa mesmo o médico é a cabeça dele. Assegura-me que ele deu entrada no Hospital estável e que o Neurocirurgião o colocou em coma assistido e o levou para a sala de operações. No entanto, não escondeu o jogo nem me dourou a pílula. Garantiu-me que nos próprios meses o meu pai não ia poder trabalhar e que havia uma possibilidade de ele ficar com danos permanentes. Perguntou-me se tinha alguma dúvida e, ao ouvir a minha resposta negativa, desejou-me felicidades, apertou-me a mão cordialmente, lavou as mãos e desinfectou-as a seguir e saiu do gabinete por uma porta semi oculta. Antes de sair, garantiu-me que o gabinete não ia ser utilizado e que eu podia ficar o tempo que quisesse ali. Agradeci e desejei-lhe um bom dia.
Peguei no telefone. Tinha uma mensagem do João: "Tudo a correr bem, Tiaguinho. Qualquer coisa liga." Telefonei aos meus irmãos. Ambos atenderam rapidamente. A minha mãe já lhes tinha ligado a informar.
O meu irmão já estava a caminho de Coimbra. Descia a A1 naquele momento e garantiu-me que em menos de meia hora estava no HUC. Pergunta-me o que é que eu já sei e eu conto exactamente o que o médico me disse. Ele ouve com atenção e após alguns segundos de silêncio pede-me para localizar a pessoa da obra que acompanhou o meu pai e não a deixar sair sem falar com ele. Pede-me para não dizer nada à minha mãe, que ele se encarrega disso. Pede para ligar à minha irmã e dar-lhe as mesmas informações, antes de se despedir com um "Até já maninho, a gente trata disto e vai ficar tudo bem. O pai é forte".
A minha irmã atendeu ao primeiro toque. Claramente em pânico por não poder vir como o meu irmão, começa-me a fazer perguntas complicadas, interrompendo-me como se estivesse a falar com um colega. Calmamente, deixo-a deitar tudo cá para fora. Ela começa a chorar e ao fundo, ouço o meu sobrinho Mário a chorar também. Ela acalma, pede-me desculpa e pede-me para recomeçar. Novamente, explico o que aconteceu. Do outro lado, silêncio. Quando termino, a minha irmã pergunta apenas:
- Quem é o Neurocirurgião?
- Sei lá mana. Ninguém me disse.
- Vai à recepção, identifica-te, diz o que se passa e pergunta. Não desligues. Eu espero.
Ligo os headphones, para poder pôr o telefone no bolso e faço como a minha irmã me pede. Quando me dizem o nome do médico, repito-o para a minha irmã, que me agradece e pede para lhe ligar assim que eu souber que o pai saiu da operação, antes de desligar.
Procuro o responsável da obra que acompanhou o meu pai e identifico-me. É um velhote simpático que me oferece um café da máquina e me explica rapidamente o que se passou, enquanto fuma um cigarro atrás do outro. Está a dizer-me que conhece o meu pai e o trabalho dele há mais de 30 anos quando o meu irmão telefona a perguntar onde estou. Digo-lhe e cinco minutos depois ele aparece, vestido com um fato escuro e uma camisa branca, sapatos pretos e uma gravata azul forte com riscas cor de vinho. Cumprimenta-me com um beijo e um abraço apertado e pergunta-me se este senhor é o responsável da obra. Respondo afirmativamente e afasto-me rapidamente, porque sei o que vai acontecer. O meu irmão vai procurar falar com o senhor e garantir que o empreiteiro se responsabiliza não só por cobrir as custas do hospital como também por manter um ordenado mínimo para a família sobreviver. Nestas coisas, o meu irmão consegue ser implacável e eu não gosto de estar por perto. Dirijo-me ao bar do HUC e almoço, antes de ligar à Luísa. Ela atende ao segundo toque e escuta-me atentamente enquanto lhe explico o que se está a passar. Pergunta-me se quero que ela venha ter comigo e à minha resposta negativa pede-me para a manter a par de novidades. Despede-se ternamente de mim e desliga. Ligo o Spotify. Hoje apetece-me Led Zeppelin. Vou pedir um café quando o meu irmão me liga. Pergunta-me se consigo aguentar o forte. A conversa com o capataz não correu muito bem e precisa de ir falar com o responsável a Seia. Respondo que sim e desligo com a promessa de o avisar quando tiver novidades. O meu irmão está a tratar-me como um adulto, não como um puto. Gosto disto. Pena o motivo... Dirijo-me ao balcão novamente.
- Boa tarde. Dê-me um café cheio e um pastel de nata, por favor.
(continua...)